segunda-feira, 4 de novembro de 2013

NARCISO, O FAZEDOR DE ESPELHOS


Confrontar-se consigo mesmo, numa imagem. Contrastar a expectativa do olho com o objeto refletido. A projeção do olhar do outro impressa no nosso olhar. Cada ponto de vista é de um ponto visto.
...

Seu Narciso era fazedor de espelhos. Espelhos de quarto, de sala, de banheiro. Espelhos de pentes e escovas, que refletiam a capilaridade dos tempos. Mas ele nunca que se encarava na vidraçaria dos dias...
Morava e trabalhava em uma casa velha, abandonada e vazia. Aprendeu o ofício de espelhos por hábito antiquíssimo: milenar. Mas nunca se olhava no espelho. Repito, nunca. Em sua memória havia apenas uma imagem inventada de si mesmo.

Um dia, encontrou-se de fato consigo, quando despercebido, olhou num lago cristalino. Prostrou-se, comiseradamente. Real e feia era sua feição. Viera o peso dos séculos... Deixara – naquele momento – de ser vampiro. 

domingo, 20 de outubro de 2013

GOSTO DE INFÂNCIA



Há coisas que nos retornam a um espaço-tempo distante pelo simples gesto de tocar ou fazer determinado ato.
Tomar café em copo de extrato de tomate é um exemplo. Tem um quê de lembrança, de memória de quando esse ato de reuso era feito não por consciência ecológica, mas por necessidade econômica, pois a família não tinha economia pra xícaras de porcelana.
Por isso, tomar café em copo de extrato de tomate tem um gosto diferente.  Ainda mais se for passado na hora, e sem leite dentro. Pois atrapalha o rememoramento. Com leite Ninho, então, tem gosto chique e atrapalha.
Café dentro de um copo de extrato de tomate, tem gosto de infância...



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

KAMALA



Descobri
o amor
nos teus seios.

         No culto das delícias
         a virgindade de minh’alma
         foi te procurar.

               Aprendi
               do mel e do fel
               dos desejos.

                           Da boca seca
                           na escassez
                           a sede.

                                      De delírios doces
                                      teus lábios
                                      me lambuzar.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

CHEGADA DE DOMINGUINHOS NOS ALTO CELESTE



 
Enquanto aqui, embaixo, os fãs e admiradores de Dominguinhos lamentam sua partida; no céu, ele chega com pompa e festa de gente muito importante.

Não é São Pedro quem o recebe na porta, mas o mestre, Luiz Gonzaga: “Ê, cabra... tu por aqui!? Se aprochega...! A gente tava mermo precisano de um a mais pra apertar esse fole”. O rei do baião trata logo de lhe emprestar uma sanfona, e um dos bom celestial microfone, pra cantar bem alto; pois lá, como Deus, tudo é grande.

Os anjo larga as harpa. Antônio Conselheiro, de alegria, dá um grito adiante. Virgulino pega a Bonita pra um arrocho no xaxado. Pade Ciço, festeiro, esquece a missa, levanta a batina e arrasta a percata, dançante... Jesus, de chapéu de palha e bigode, tira Maria Madalena prum xote. E Maria, sua mãe, e Deus, aplaudem..!

Agora, no céu, o São João nunca que para. O santo dono da festa ta todo embestado... É fogueira sempre acesa. Quadrilha de querubim e arcanjo. E as nuvem, celeste... de bandeirola tudo enfeitada. Quando Assum Preto, cansado, repousa o canto. O Sabiá recém-chegado, mais alto, retoma o mote...

 


 

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O ARREBOL DA JUSTIÇA


 
 
Os gritos, os passos, os laços:

ecos de indignação reverberar

o vilipêndio da dor

na rua da memória,

das cidades...

 
Ardor, luta, labuta,

por uma aldeia melhor

onde a pino

esteja os raios da liberdade

e desperte fulgente a verdade

o turvo sono passivador.

 

O rosto se espanta

eis o povo: en-canta

e se insurge alto

nos cartazes, camisas e atos

mesmo diante dos

maltratos

da polícia insana

que a ferida inflama.

É a tradução

da arrogante imundícia

dos que usam leis

e paletó:

vândalos que saqueiam a

res publica

com o nó da gravata.


Eis o arrebol da justiça

verde

pintando o horizonte.

Façamos

surgir

intenso

o sol!

sábado, 25 de maio de 2013

Eu e Eles: ENTREPOEMAS

Imagem: Herivelton


PARA LARI E BIA
Henrique Magalhães e Weslley Almeida

Ela se jogou na lama
com o seu sexo
nu

e o seu prazer era
lânguido
e aquoso

sua vertigem febril
inundava
aquela aurora

e seu orgasmo
era fluido
e deslizante

o corpo
animal
rosnava o cio

e seu grito
atravessava
plantas e rios

à sombra
úmida
de uma sangria inquietude.

***

RENDA DA NOITE
 Larissa Rodrigues / Weslley Almeida

Ah, a noite,
essa moça misteriosa...
vestida de azul marinho
e brilhos silenciosos
de um luto que celebra as estrelas
a fazer delirar

olhos passantes
olhos pensantes

a imaginar
desenhos de escuridões
insanos encantamentos
cantar
canções do vento
e dos vestidos da noite.

 ***

O MITOPOÉTICO
Amanda Freire / Weslley Almeida


Sou aquele que desejam
no trânsito obscuro querer:
 penumbra.
Aquele
   que...

       esperam
            aflorar no ser:
flores policrômicas do anímico.

            Sou eeerrante
Poéticurvelíneo
Nas veredas 
arquetípicas
do ser.







quinta-feira, 9 de maio de 2013

AO PÉ DA LETRA, DENTRO DO CORAÇÃO



Créditos da imagem: http://www.tjskl.org.cn

AO PÉ DA LETRA, DENTRO DO CORAÇÃO
devaneios sobre a denotação e a conotação 
dos traços/palavras


Nas an-danças dos sentidos e das significâncias estão imbricados os conceitos de denotar e conotar.
A denotação é verificar na pedra seus atributos visíveis a olho nu.
Conotar é enxergar essa mesma pedra no campo das possibilidades por uma percepção poliocular.

A literalidade é importante na análise de elementos, sobretudo nos campos que precisam de objetividade como o jurídico, o da medicina e o técnico-científico. No desenho industrial e na arquitetura. Contudo, a plurivalência dos sentidos dá vastidão no mundo do artístico e do literário.
Há importância, portanto, nos dois âmbitos de funcionalidade dos traços e palavras. O contexto é que vai indicar o seu melhor valor, uso e percepção.
A palavra poética, por exemplo, se lança para além da literalidade (denotação conotação), pois perscruta os mistérios dos sentidos. Inclusive, o ato de dizer diz (em maior grau ainda na literatura) mais do que as palavras, pois comporta também os silêncios: aquilo que não sabemos que estamos por dizer.
Arrancar da pedra uma escultura é dar a ela dimensões para além da obviedade. Mas é preciso também saber o que ela representa cientificamente para poder se construir prédios e casas, servir de alicerce na engenharia.
Portanto, a complementaridade dos sentidos (na sua fluência e rigidez) é necessária. Essa ambivalência, inerente à língua: denotatividade/conotatividade, são possibilidades que não se excluem, mas se aglutinam, líquidas, na mesma fonte.
Bebamos...! Um brinde à palavra.


domingo, 28 de abril de 2013

TAPETE MÁGICO OU DA POLISSEMIA DO OLHAR



Um tapete novo e os olhares se acoplaram num novo feixe óptico.

A casa ganhou outras possibilidades oculares: os quadros, o teto, os insetos nas paredes; o meu corpo é um telescópio que gira quando mudo de posição. 

A relação com os passantes na sala recebe um grau diferente quando estou sobre ele.

Me embolo no tapete (com ou sem a visita). Me largo nele ao som de Enya e Djavam. Parece que – Chico – nele sou mais malandro, e também o meu olhar é cafetão, no que concerne à impureza do enxergar diferente. 

Escrevi esse texto na tentativa de malandrar as palavras pelo olhar dos dedos. 
O coração bate o tambor: vital instrumento.
Para brincar com Heidegger, o que é o ente se não o Ser que lhe empresta o olhar... pelos tapetes dos nossos lares metafóricos?
Boff, sim: “todo ponto de vista é [mesmo] visto de um ponto”. Nós mesmos. 

Eis o caminho da descoberta 
do clitóris do olhar. 
Os pontos “G”s 
de nossa visão.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O GRITO

Imagem: Patricia Ariel


Nessa época de
Samujos assassinatos
aparelhos desligados
e jovens bombas (ou não)

a poesia me retoma como um tapa

e um aperto
(caneta)
nas mãos
e me diz:
"continua!". 

sábado, 20 de abril de 2013

quinta-feira, 21 de março de 2013

COMPLEXO DE CÃO




Meu cachorro foi meu primeiro analista.
Me latiu algumas verdades
depois de lamber minha boca
suja
de versos.
Fui levado com ele pro canil
por andar em guetos
mijar em postes
fazer na rua
o que se faz
no Congresso Nacional.

“Coleira
é pra quem tem dono
seu pedigree frustrado.”
Disse aos que lá
me gritavam ordens.
E completei:
“Sou vira-lata
dos que cantam e latem
- donos da madrugada -
que mordem a vida
como abraça a manhã
o sol”.





quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

PARA ROMA COM AMOR




Para Roma com Amor (2012), filme de Woody Allen com participação de grandes nomes do cinema como Roberto Benigini (A vida é Bela), Penélope Cruz (a musa de Almodóvar) e Alec Baldwin, tem um enredo tecido de múltiplas tramas que envolvem, no seu bojo, aspectos culturais dos EUA e da Itália, dando um caráter bilíngue ao longa.

O marcante medo da morte é presente (mais uma vez) no personagem encenado por Woody Allen, que figura um típico americano: pragmático, utilitarista, que em tudo visa o lucro, e que é empresário do ramo da música.

As complexas relações amorosas vividas no filme mostram o jogo cômico e fluido que impregna os amores. O enredo é quebrado, assim como os paradigmas sexuais. Os fetiches e as paixões, incontroláveis...

A futilidade e o peso da fama são tratados  nessa pelicula com um tom de realismo fantástico, beirando o non sense; talvez, como forma de catalisar os sentidos e chamar à atenção para a fugacidade e superficialidade do mundo midiático.

Como de costume, neste seu filme, Woody Allen começa – e termina – com uma personagem falando diretamente para o espectador: algo que eu acho marcante (e gostoso) na sua prática cinematográfica. E o faz com uma fala-convite a conhecer e a desfrutar das ruas estreitas, das ruínas e das estórias de Roma, através de uma fotografia que encanta.

Bom filme...!