No início da década de
70, neófitos escritores feirenses (de adoção ou nascimento), mediados pelo já
então experiente poeta e editor das Edições Cordel, Antonio Brasileiro,
resolveram iniciar uma saga: a Revista Hera. A deusa Hera, da mitologia grega, esposa
de Zeus, traz em sua mão uma romã, representando a fertilidade. Fértil, pois,
foi esse projeto, que atravessou gerações em quatro décadas.
O grupo fundador de
Hera se reunia regularmente para a poesia, o futebol e o vinho. Dessa mistura saíram uma profusão de dribles
poéticos e embriaguez de lirismos. Inicialmente, com publicações de textos em prosa,
Hera tornou-se (a partir do nº 3) uma revista exclusivamente de poesia. E
trazia capas e ilustrações com requintes plásticos que lhe agregavam relevante
valor artístico e fruição estética. Geralmente, com traços do padrinho Antonio
Brasileiro e de Juraci Dórea. A direção dos trabalhos, via de regra, era de
Roberval Pereyr; mas também foram diretores: Paio Soares, Trazíbulo e Rubem
Alves Pereyr, dentre outros.
Ao todo, 40 poetas
singraram pelas páginas das 20 edições do periódico. Sempre com o caráter
renovador da literatura local, trazia, a cada edição, jovens escritores, mas,
também, incluiu autores renomados de fora do Portal do Sertão, como Marco
Lucchesi e Ruy Espinheiro Filho.
A leitura deste fac símile das revistas Hera (são 710
páginas) foi feita paulatinamente, com marcador de texto, google, papel e caneta (para registrar algumas inspirações e
indicações). Lida na rede, no sofá e na cama, Hera me propiciou momentos de
deleite. Por isso, resolvi escrever a respeito, dando minhas impressões e
mostrando um pouco do que se encontra dentro desta obra, tão cara à história da
literatura feirense.
Seguem alguns dos
poemas e fragmentos mais expressivos que encontrei nesta grande romã cheia de
versos:
IDERVAL
MIRANDA
Lavra
no
espelho
a
imagem lavrada da face
na
face
o
sofrer lavrado na pedra
na
pedra
o
poema lavrado na imagem
na
imagem
a
morte lavrada nos olhos
nos
olhos
o
brilho do sangue/da morte
na
morte
a
questão do tempo.
A dor
a dor pode ser aguda
como uma agulha sob a unha
ou grave
como um rosto anônimo em wall street
Punhal
este
silêncio
ROBERVAL
PEREYR
Poema
Cantei setembro nos
céus: cantei-me
nas horas vastas
auroras dúbias
manhãs no leito,
cantei setembro.
(Mil canários de
setembro em mim
sopraram seu canto:
cantaram
longe tão longe mais
longe
do que sem fim,
cantaram longe
tão longe mais longe
do que em mim).
Cantei-me nas horas
vastas auroras
dúbias manhãs no
leito, cantei espera
dos canários de
setembro. Cantei longe
muito longe mais
longe do que sem fim .
Amálgama
O
exercício da mentira
assevera-nos
o rosto;
petrifica-nos
o busto
e
engrandece-nos a ira.
O
exercício da mentira
engrandece-nos
as posses;
ajoelha-nos
em preces
sob o
teto das igrejas.
O
exercício da mentira
faz-nos
fortes barulhentos;
tece
grandes pensamentos
para
encher-nos de amarguras.
O
exercício da mentira
faz-nos
lúcidos, divinos;
torna os
animais humanos
e torna
os deuses caninos.
O
exercício da mentira
(por que
tamanha maldade?)
concedeu-nos
- que loucura! -
o
exercício da verdade.
Poema Canção
Existo
na brisa e nos pombos
e
meus olhos estão doando
silêncio.
De
sempre, de muito longe
me
vejo e venho – e recordo:
escuto
velhas memórias
no
vento.
Existo
desde o princípio
silente,
anônimo:
elo
íntimo de espelhos
gerando-me,
gerando-me...
Galope
Meus
pensamentos são meus camelos
Meus
pensamentos são meus cavalos
(com uns
cavalgo para o silêncio
com
outros marcho para a saudade).
Meus
pensamentos são meus cavalos
Meus
pensamentos são meus camelos
(sou
sertanejo, nasci nos matos,
ando a
cavalo para mim mesmo).
Meus
sentimentos são meus desejos
em que me
vejo perdido, e calo.
Meus
pensamentos são meus camelos
Meus
pensamentos são meus cavalos
ANTONIO
BRASILEIRO
Estudo 165
Compor um
homem
com suas
tramas, seus dramas,
teogonias,
gramáticas, soluços:
compor um
homem,
do
orvalho matinal compor um homem,
do céu
cheio de estrelas, do mistério
do homem
compor o
homem; compor um homem
da
criança que há no homem, do homem
a
adivinhar-se em antiquíssimas retinas;
compor um
homem
com seus
soluços, gramáticas, teogonias
- e
recitá-lo perante os outros homens.
Dedal de Areia
O dia em
que nasci
não teve
mistério algum.
O
condutor do bonde almoçou
à mesma hora
a novela
do rádio continuou
em suspense
a guerra
era a mesma merda: guerra
é guerra.
Foi um
dia claro como hoje
como
ontem, como amanhã
e como
daqui a cem anos, com absoluta
incerteza.
Nuança
Meus caminhos, meus mapas
meus caminhos.
Tudo está em ordem
em minha vida
Como se faltasse
alguma coisa.
ROBERTO
MACHADO
O/Vôo
O
ovo é um vôo
Alçando
na semente
O
horizonte pássaro
Em
estado latente.
(...)
JURACI DÓREA
¿Será
a vida
ida
ou sorte?
¿uma flor (da morte)?
um risco um riso
um corte?
¿será
a vida
vida
ou morte?
UBIRANDI
TAVARES
O Amante
Quero
te amar
(loucamente)
Te
escravizar
(lentamente)
E
te desprezar
(normalmente)
LUÍS
PIMENTEL
Escola de Menores
(...)
Aves
de aço
Bicos
de ouro
Canto
sintetizado
Penas
de acrílico flutuando ao vento.
Filoscopia
Bebida
não é remédio.
Bebo
porque a vida
é
irremediável.
T.
S. RAUSTO
Visão de Ontem
No
século vinte e um deus será pílula
ou
cigarro ou pinga ou coca-cola
ou
marca-passo marca-passo marca-passo
Será
usado nos bolsos da cueca
ou
nos anéis do dedo ou do pescoço
ou
entre as pernas entre as pernas entre as pernas
No
século vinte e um deus será muitos
e
poderá ser registrado nos cartórios:
deus
dezessete, vinte, trinta e cinco...
Será
vendido em leilões, engarrafado
por
quinze empresas multiplanetárias
por
doze centavos na liquidação.
No
século vinte e dois deus será feito
da
navalha, gilete, guilhotinas
para
matar as dores e as lembranças.
Será
de novo cruel, impiedoso
com
dez tronos na terra e no céu:
e
fará tudo começar de novo.
PAIO
SOARES
Registro
Sou
poeta do fim do século
do
fim do milênio, do fim de tudo –
mas
sem apocalipse algum na algibeira:
apenas
os quarenta documentos de um cidadão
comum
RUBENS
ALVES PEREYR
Canto
(...)
Cantar
é tecer corcéis alados
– pégaso
–
no
cavalgar de pastos e mitos
para
além dos metros
em
que nos medimos.
JUCIARA
LIMA
Face Oculta
Na
face oculta da palavra
muitas
descansam
num
ninho de silêncios
e
cumplicidades
Outras
livres
se
abrigam
insinuante
como nuvens
ao
findar da tarde
A
face oculta da palavra
é
um universo de cores
e
formas colossais
Na
face oculta da palavra
a
luz habita
sacudida
por enormes vendavais
LUIZ
VALVERDE
(...)
No
resvalar dos ventos
há
súplicas.
(...)
*
Não
sei se por equivoco, broncopneumonia,
complexo
de castração ou insuficiência de fundos,
Eu,
cidadão do mundo,
não
dou um passo sequer
além
de mim.
DAMÁRIO
DA CRUZ
Previsão Meteorológica
Nenhum
dia
é triste!
Nós
é que chovemos
na
hora errada.
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