O termo dissonância é oriundo do
mundo da música e denota estranheza, anormalidade, caos, complexidade. A música
é feita de notas e as notas compõem acordes, os quais, por sua vez, geram
harmonia. Existe a previsibilidade de que um acorde seja formado por uma
tríade: ou seja, de três notas musicais: a 1º, a 3º (ou 3º menor) e a 5º notas
do campo harmônico. Ex.: O acorde de Dó maior é formado pelas notas Dó, Mi e
Sol. Esse tipo de acorde deságua em suas próprias margens. Encerra-se dentro harmonicamente.
Os acordes
dissonantes (com 4º, 6º, 7º ou 9º...) são caóticos e inacabados. O acorde com
7º, por exemplo, (também chamado de acorde de preparação) é um anunciador de
acordes outros, prepara um devir harmônico. Ou seja, sua marca é a
incompletude.
As músicas mais
ricas harmonicamente (eis um aparente paradoxo) são aquelas cifradas por
acordes dissonantes, e que na pauta transgridem a normalidade do mundo musical.
A
poesia é vista comumente como um gênero literário. Mas, no seu caráter
mais vasto e profundo, é o elemento abstrato que se encontra no belo: que
arranca arrepio e causa espanto.
O
poético tem como essência a fruição: o degustar da linguagem (seja ela musical,
pictórica ou verbal). A sua finalidade encontra-se em si mesmo. Mas gera –
inevitavelmente – reações de inquietação, de co-moção e de transformação no
plano do anímico. Ele atinge as profundezas (ou criando aqui um neologismo, as
“profunduras”) do ser, ampliando o olhar de nossas retinas, apurando a recepção
musical dos nossos tímpanos, fazendo-nos ouvir e sentir as dissonâncias da vida
e a comungar com elas.
A
função dissonante da poesia, assim, gera um espírito deslocado em quem
vive nas incursões do estado poético. Aponta trilhas não tomadas, inauguráveis
somente pelo esgarçamento das asas da sensibilidade e do pensar avesso. A
dissonância da poesia leva-nos a dançar pelas correntezas da terceira margem. E
por isso, o poeta é expulso da república: por ser perigoso, caótico, avesso à
musicalidade do normal. A polis “precisa” de ordem, do status quo presente. O poeta é um, enfim, um gauche
(fazendo referência a Drummond): tem um anjo torto tocando – na sua harpa – um
acorde dissonante.